sexta-feira, 19 de maio de 2017

"Autopsicografia", "O Amor Quando Se Revela" e "Não Sei Quantas Almas Tenho" - Fernando Pessoa

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.


Esta composição poética é uma síntese do que Fernando Pessoa pensava sobre a génese e a natureza da poesia. Pode-se considerá-lo como uma verdadeira "arte poética".
O assunto do poema desenvolve-se em três partes lógicas, que correspondem a cada uma das estrofes:
Na primeira parte, o primeiro verso contém a ideia fundamental do poema, na frase de tipo axiomático "o poeta é um fingidor", que, logo a seguir, é explicado, ou confirmado, por meio de uma particularização centrada na dor.
Na segunda parte do poema, o poeta alude à fruição artística da parte do leitor. Este não sente a dor real (inicial), que o poeta sentiu, nem a dor imaginária (dor em imagens) que o poeta imaginou, ao ser artífice do poema, nem a dor que eles (leitores) têm, mas só a que eles não têm. Isto é, o que o leitor sente é uma quarta dor que se liberta do poema, que é interpretado à maneira de cada leitor.
A terceira parte do poema, como a própria expressão "E assim" prenuncia, constitui uma espécie de conclusão: o coração (símbolo da sensibilidade) é um comboio de corda sempre a girar nas calhas da roda (que o destino fatalmente traçou) para entreter a razão. Há aqui uma referência à função lúdica da poesia, que começa na fruição de que o próprio poeta goza, no acto da criação artística. São aqui marcados os dois pólos em que se processa a criação do poema: o coração (as sensações donde o poema nasce) e a razão (a imaginação onde o poema é inventado). Fecha-se neste fim do poema como que um círculo cuja linha-limite marca uma pista sem fim em que nunca se esgota a dinâmica do jogo sensação-imaginação.




O Amor Quando se Revela

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar, 
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...


Sendo o poema em questão um poema que toca o tema do amor, não se pode certamente considerar como um poema de amor. Isto porque, como é hábito de Pessoa, muitas das vezes os temas mais simples são processados, refinados, intelectualizados; de maneira a que a mais simples exposição de ideias nunca é apenas uma exposição de sentimentos.
Isto nota-se ainda mais quando são poemas ortónimos, escritos em nome do próprio Fernando Pessoa, porque sem artifícios ou máscaras transparece frágil e sem cor o sentimento de estar perdido no mundo, de fragilidade, de incapacidade e tristeza - marcas inextinguíveis do carácter do poeta e que encontravam, na sua poesia, o escape natural.




Não Sei Quantas Almas Tenho

Não sei quantas almas tenho. 
Cada momento mudei. 
Continuamente me estranho. 
Nunca me vi nem achei. 
De tanto ser, só tenho alma. 
Quem tem alma não tem calma. 
Quem vê é só o que vê, 
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo, 
Torno-me eles e não eu. 
Cada meu sonho ou desejo 
É do que nasce e não meu. 
Sou minha própria paisagem; 
Assisto à minha passagem, 
Diverso, móbil e só, 
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo 
Como páginas, meu ser. 
O que segue não prevendo, 
O que passou a esquecer. 
Noto à margem do que li 
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.



Este poema, em análise, é, claramente, um poema de reflexão por parte de Fernando Pessoa e não tanto um poema de análise psicológica da sua mente. Diz-se isto recordando certas passagens do poeta em que este recorda ler o que escreveu com grande estranheza: é como se a sua obra lhe fosse estranha, quando ele percorre as páginas do seu passado. 
 Devemos compreender que em Pessoa a obra se confunde com a vida. Aliás, em determinados momentos Pessoa abdica da vida em favor da obra (o exemplo maior terá sido Ofélia, a sua única namorada conhecida).

 É pois nesta perspectiva que este poema deve ser lido. Imaginemos Pessoa sentado, perto da sua arca de inédito, num dos últimos meses da sua vida, relendo as páginas de há 5, 10, 20 anos e o que lia ele senão passagens quase irreconhecíveis de outros «eus», que não ele mesmo. 

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