quarta-feira, 26 de abril de 2017

O Doido e a Morte - Raul Brandão

A trama da peça O Doido e a Morte, texto de Raul Brandão encenado pelo Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, de Cabo Verde, parece fácil de ser descrita: um doido entra no gabinete do governador com uma bomba. O modo como os personagens lidam com essa situação revela uma sátira cheia de espírito e dotada de um estilo bem humorado de ver a vida através da morte.

Aos poucos, três elementos se revelam e se mostram relacionados sob duas forças, dois movimentos distintos:

O primeiro elemento é composto por dois artifícios - uma grande tela branca ao fundo do cenário, que assume cores marcantes com a luz e que vai acompanhando as mudanças de tons do espetáculo; junto com efeitos sonoros que dão máxima expressão a pequenos detalhes. Essa sonoplastia ressalta especialmente os movimentos mímicos. A tela não é bem um pano de fundo: os poucos objetos que compõem o cenário são transparentes, de forma a sempre incorporar a cor que irradia de trás e que se torna dominante na cena. Essa cor refletida ajuda a compor o fundo da história, como se retratasse o que está por trás de tudo o que se passa, além de exercer certa influência no momento da cena. Junto com a história não contada da vida de cada personagem, ela vai compor um elemento que se prende a marcas do passado, e é esse plano que contextualiza de forma subjetiva toda a história.


O segundo elemento são os personagens. Não há nenhuma relação social entre os dois personagens principais da peça, o Governador e o doido Sr. Milhões, mas eles são figuras conectadas, chegam a se declarar almas gémeas, facto que é importante para entender a conexão entre eles. Essa irmandade está na similaridade entre seres opostos. A ligação existe pois esses personagens sugerem apenas intensidades diferentes de uma mesma coisa: são personalidades que fogem da representação e do comum: um quer ser um génio e o outro quer ser um doido. O papel de ambos parece constantemente se inverter: o doido racionaliza sua descoberta filosófica e o esperto se desespera e endoidece de medo.
O terceiro elemento é o lugar da ação. O espaço da cena se resume ao gabinete do Governador, os personagens estão presos lá dentro, circunscritos a uma realidade de curta direção e sinistro. Porém, este gabinete guarda toda a vida dos personagens, é nele que o Governador passa o seu dia, lendo, jogando golfe e escrevendo suas peças de teatro.
A bomba, guardada numa caixa, se mantém intacta, mas detona uma tensão entre os três elementos citados. Ela é uma força que vem de fora e atinge os personagens, forçando-os a reagir. Com a morte como única saída, todos os três elementos da peça ganham intensidade. A relação entre eles, forçada pela presença da bomba, gera basicamente dois movimentos. Primeiramente, um movimento centrípeto, no qual a sua vida e o conforto do seu gabinete parecem se desmoronar e ruir. Por um momento se descobre a futilidade e os desperdícios vividos – um peso que esmaga os personagens. O outro movimento, centrífugo, surge de dentro deles, do cárcere pessoal, e impele para a fuga. Qualquer saída é válida, cada um a seu modo se contorce para alcançar a sua. A porta do gabinete não existe no cenário e é sempre atravessada com gestos mímicos de abrir e fechar, por isso parece não ser uma opção real de fuga. O Governador, por fim, trai todos os seus princípios morais para sair dali, chega a trair a si mesmo, entregando-se para seu único confessor possível, o Doido, como grande mentiroso; enquanto o intolerante Sr. Milhões só vê uma forma de completar o ciclo niilista: explodir-se e desintegrar-se para que sua poeira seja dissipada pelo cosmos.

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