terça-feira, 23 de maio de 2017

António Gedeão (Biografia) e as Suas Obras: "Lágrima de Preta", "Poema Para Galileu" e "Pedra Filosofal"

Rómulo Vasco da Gama de Carvalho nasceu no dia 24 de Novembro de 1906 e faleceu no dia 19 de Fevereiro de 1997, em Lisboa. Foi professor de física e química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes e no Liceu Camões. Foi pedagogo, investigador da história da ciência em Portugal, divulgador da ciência e poeta sob o pseudónimo de António Gedeão.


Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.


O poema transmite-nos uma mensagem profunda e uma lição cheia de humanismo: o sujeito poético vai analisar uma lágrima de uma mulher de raça negra e provar que a sua lágrima é igual a qualquer outra lágrima (neste caso, igual às lágrimas da raça branca).
Esta é a ideia central do poema, onde vemos a vertente anti-racista do mesmo, que poderá ser exposto em qualquer propaganda contra o racismo realizada nos dias de hoje.
O poeta suscita nos leitores uma reflexão sobre o essencial e o acessório, sobre o interior e o exterior, sobre a essência e a aparência, sobre o modo como convivemos com os outros e como aceitamos essa diferença.


Poema Para Galileu

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

Este poema discursa sobre uma época situada por volta de 1600, e sobre a vida de um dos "gigantes da física". Galileu que antes de 1611 ensinava matemática, ainda fazia suas explicações do sistema planetário com geocêntrico, mas já estava entrando em contacto com as leituras de Copérnico. Em cartas a Kepler, a discussão sobre o sistema heliocêntrico séria ridículo, pois em contra posição as ideias aristotélicas e a simplicidade contidas nelas, bastavam para responder sobre muitas observações dos corpos celestes e outros fenómenos. 
Porém em 1609, com a utilização do telescópio (Creditado a Hans Lippershey a sua criação) Galileu pode fortificar a defesa da teoria heliocêntrica. Assim, por meio de várias observações Galileu descobriu refutações do que propunha os ideais aristotélicas-ptolomaico, das quais propunham os corpos celestes depois da Terra como, feitos por matéria “etérea” justificando a não queda para o centro do universo, o centro da Terra. Dentre essas refutações estão:
A superfície da Lua:
Galileu percebeu que a Lua tinha em sua superfície crateras, as quais contradiziam a crença popular da época.
A concepção da via-láctea:
Também, em suas observações Galileu conseguiu atentar para estrelas jamais vistas a olho nu. O que antes era apenas admiração aos olhos humanos, se tornou então um problema já que a maioria delas não era vistas por eles.
Os satélites de Júpiter:
Ao apontar o telescópio para o "errante" Júpiter (os planetas eram chamados de errantes, pois em algumas épocas de suas órbitas realizavam movimentos retrógrados), Galileu percebeu os movimentos de 4 corpos celestes. Os quais realizavam esses movimentos ao redor de Júpiter e não ao redor da Terra como propunha o conhecimento da época.
Foi assim que Galileu, cujas ideias já estavam desfavoráveis ao geocentrismo publicou em 1610, o livro "Sidereus Nuncius" (tradução ao português: "O mensageiro das estrelas"). Neste livro estavam contidas as observações e relatos das refutações, a cima, descritas sucintamente.


Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

O título do poema remete para a alquimia (uma substância que, segundo a lenda, adicionava-se aos metais pobres para se transformarem em ouro). Assim, este título associa o sonho humano à magia dos alquimistas, sugerindo que o sonho transforma em ouro as fraquezas e as pequenas ambições humanas.
O sonho faz parte da vida dos seres humanos, é tão frequente, concreto e definido como uma pedra, um ribeiro, os pinheiros, as aves, tudo fazendo parte da Natureza. Estas comparações que surgem no início do texto sugerem que o sonho é uma coisa simples, mas, ao mesmo tempo, complexa, porque é muito difícil de definir. Apontam ainda o quanto os sonhos são abstratos e subjetivos, podendo, no entanto, ser transformados em algo tão concreto e definido como outra coisa qualquer. 

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